Testamento vital

07/03/2021

Mesmo tendo descomplicado as coisas que deixaremos quando morrermos, ainda assim alguém terá que cuidar do inventário. Advogados se encarregam da parte legal, mas é o inventariante quem tem que providenciar toda a documentação.

Fui eu a inventariante do espólio de meu sogro e lembro-me de inicialmente ficar zonza devido às muitas certidões que foram solicitadas. Depois aprendi que trata-se de provar propriedade e ausência de débitos de cada bem. Foi bastante trabalhoso; nem tanto por requerer e buscar certidões, mas por demorar muito para me "achar" onde e como encontrar o que eu precisava.

Como eu mantinha o mote interior de não deixar dor de cabeça para ninguém (só saudades) resolvi me lançar à organização que sempre achei chata demais para empreender.

Decidi fazer um "pré-inventário" para deixar bem claro o caminho das pedras. Criei uma pasta que é uma espécie de índice. Nela consta a relação de bens declarados para Imposto de Renda (e constariam também os "por fora" se não tivesse havido a fase da descomplicação). Ali constam as indicações dos lugares onde guardo o que virá a ser necessário, como as pastas com certidões, informações gerais e telefones de contato; onde achar e como abrir o arquivo eletrônico que contém as senhas de acesso aos mais diversos sites, etc..

Foi uma faxina. Quem quer que recicle os papéis usados que jogo fora deve ter ficado contente com a quantidade de tranqueira que saiu de minhas gavetas. Tirei novas certidões que deveriam ser negativas e - surpresa - encontrei algumas taxas que não haviam sido pagas, como seguro obrigatório de carro e até erros da prefeitura no lançamento do IPTU. Nada como olhar com lupa o que o advogado certamente apontaria como necessidade de correção.

Tentando manter-me com olhos de quem não conhece o que guardo, busquei um formato único para arquivamento da papelada. Meses depois, estava tudo pronto para dar entrada no inventário (só faltava morrer...rsrs). Modéstia à parte, ficou ótimo e me senti orgulhosa por isso.

Passo seguinte: instruir meus herdeiros.

Cada um teve uma reação diferente.

Beto, que estava seguro de que tudo estaria completo e correto, nem olhou. Agradeço a confiança, mas isso me inspirou uma conduta, a partir daí, de tentativas sucessivas de mostrar a ele onde guardo as coisas de que cuido. Vou ter que pensar mais sobre isso ...

Enquanto executava minhas tarefas, abordei o assunto com a Tabata, que se sentiu incomodada, preferindo pensar que seus pais não morreriam tão cedo. Mas no final de ano, na reunião que promovi com minhas duas filhas, manteve-se atenta. Ufa, que bom!

Natasha foi positiva desde o início, mostrando-se bem pragmática. Olhou, ouviu e fez perguntas pertinentes - aprendeu tudo o que precisará fazer. Agiu como minha inventariante.

Toda essa trabalheira foi atividade basicamente cognitiva e física, que me trouxe bons momentos de recordação. De emocional ela só tinha o meu mantra (de evitar deixar trabalho para outros), mas terminá-la tranquilizou-me. Percebo como que tendo tirado de minha mente uma porção de pensamentos e tarefas que poderiam me chatear ou preocupar quando eu souber que minha morte está próxima. Era algo que eu devia e precisava fazer, e serviu para tornar mais concreta a ideia de minha finitude.

Engraçado! Parece contraditório, mas quanto mais penso em minha morte, por não estar doente mais me sinto cheia de vida!

"Inventário" concluído, estava então pronta para desenvolver o que é chamado popularmente de "testamento vital", mas cujo termo oficializado pelo Conselho Federal de Medicina é "Diretivas Antecipadas de Vontade" (DAV). Em sua resolução CFM nº 1.995/2012, a CFM regulamente normas para manter o direito à autonomia - permitir ao paciente decidir sobre os tratamentos que quer ou não receber, mesmo quando estiver impossibilitado de se comunicar ou com alguma demência. Para tanto, o documento nomeia um ou mais procuradores de saúde, que assumem a responsabilidade de fazer com que as DAV sejam colocadas no prontuário da pessoa. A equipe médica deve seguir como expressado pelo paciente, independente do que outras pessoas (amigos ou familiares, por exemplo) possam querer.

Imagino que decisões como manter ou não uma pessoa dependente de aparelhos sejam infernais. Deixar escritas as próprias vontades, tira essa carga insuportável dos ombros dos familiares e, por isso, acredito que escrever suas Diretivas Antecipadas de Vontade seja um ato de amor.

Foi muito (muito mesmo) mais fácil de fazer do que parece. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia criou um app muito eficaz e sensível, chamado "Minhas vontades". Baixei no celular e fui recebendo informações sobre diversos aspectos, pontos a refletir e espaços para escrever o que gostaria que fosse feito comigo no caso de sofrer um acidente ou contrair uma doença incurável que me impeça de decidir sobre meu fim de vida. Não há um formato rígido, apenas a sugestão de preencher vários tópicos. Não há tempo predeterminado e, para deixar isso muito claro, o que seria uma tecla de "seguir", chama-se "já refleti sobre o assunto". Foi esclarecer e agradável.

Como eu vinha pensando sobre isso, não demorei muito. De qualquer forma, o app (que definitivamente recomendo) permite interromper e continuar a qualquer tempo, inclusive alterando as diretivas. Ao finalizar, fui conduzida a revisar o documento que foi gerado e, depois de satisfeita, a comandar a gravação de um arquivo pdf. Imprimi, assinei e coloquei na minha pasta "inventário", para que esteja fácil de encontrar por meus procuradores.

Eu esperava que fazer as DAV terminasse minha fase de preparação física, mas percebi que ele se presta especificamente a tratamentos médicos. Faltava expressar minhas vontades para meu pós morte.

Por um longo tempo ouvi minha mãe dizer que quando morresse queria ser enterrada junto com sua mãe. Depois de um período após a morte de meu pai, isso voltou à minha mente, juntei coragem e perguntei-lhe se queria ser enterrada junto a seus pais ou a seu marido. Para minha surpresa, ela disse, sem pensar, que fizéssemos o que quiséssemos, já que ela estaria morta mesmo.

Essa conversa estava fresca em mim hoje, quando escrevi um documento adicional para acompanhar minhas DAV. Foi sublime escrever esse texto. Ele brotou como nascente de rio que estava interditada. Foi só abrir caminho e minha essência fluiu. E foi maravilhoso assistir à minha essência fluindo - foi um dos mais íntimos encontros que tive comigo.

O documento vai agora para minha gaveta. Não é confidencial. Fica disponível se alguém desejar lê-lo, seja para contribuir para pensar, seja para me conhecer melhor - ele sou eu.

Ufa! Terminadas as fases de todos os tipos que pude imaginar, estou livre, leve e solta para mergulhar de cabeça na última etapa de preparação para a minha morte: a afetiva.


Autor do artigo
Tania Paris