sem GPS em Christchurch

14/06/2020

Cheguei em Christchurch com o tempo nublado, com que já me acostumara, e GPS funcionando - foi com ele que encontrei uma área ótima onde passar a noite. 

O aplicativo CamperMate parecia ser tudo de que eu precisava para me instalar. É só abri-lo que ele já identifica todos os Holiday Camps, tornando fácil verificar a distância e compará-los em termos de facilidades oferecidas, horários de funcionamento da recepção, taxas, etc. Em qualquer ponto da viagem, eu abria o aplicativo e decidia baseando-me em muitas variáveis, tais como a beleza da luz do dia (que era a mais significativa para mim, já que céu nublado estava me acompanhando em mais de 90% do tempo), distância de onde eu estava e de onde haviam atrativos que queria conhecer, distância da praia e oportunidade de vista para o mar e até tamanho, porque eu preferia os menores, que me davam a chance de criar coragem para entabular conversa com alguém da recepção ou algum outro neozelandês. O sotaque kiwi é um capítulo à parte. O inglês é o mesmo que conhecemos, mas ouvi-lo é outra história. Tem o clássico "ái" australiano mais amenizado para o "ay" (fala-se tudai, ao invés de tudei, para today) mas tem um "ái" forte para o "ei" e "i" para o "e", que me deixava alegremente louca. Fui a cassinos e joguei backjack. Nesse jogo, o croupier anuncia o número que se obteve e eles falavam "sivin" e "ilivin" para "seven" e "eleven" e uma bem aberto `áitin" para "eigtheen"... era impossível ganhar...rsrs. Enquanto eu tentava descobrir o número, o jogo já estava correndo sem minha decisão. Então me determinei a conversar mais, quando as pessoas não estivessem com pressa e não precisassem me pressionar por respostas, para eu não parecer débil mental.

Quando cheguei a Christchurch, a maior cidade da ilha sul, estava ansiosa por fazer meu check-in, porque aquele parque era bastante procurado, por ser bem equipado e próximo à cidade, e pela recepção fechar relativamente cedo. Instalei-me, o que no meu caso significava apenas receber meu crachá da vaga da minha van, e dirigi para o centro.

Encontrei obras de arte pelas ruas, e parques bem grandes que quebravam o agito como oásis. Observei pessoas indo e vindo e respirei a alegria de estar ali.

À noite, decidi jantar no cassino (existem só cinco em todo o país e eu não poderia deixar passar esse). Fiquei brincando lá até mais de meia noite, peguei minha querida van, liguei o Google Maps e... ops! mensagem de "GPS sem sinal".

Lembrava-me do caminho. Cheguei na região mas não reconhecia, de jeito nenhum, as ruas em que deveria virar. E assim, com a constante mensagem "GPS sem sinal" zanzei mais de uma hora e meia procurando o camping. Ninguém nas ruas para pedir informação; mas havia a deliciosa sensação de me sentir segura, de não haver perigo exceto o do sono me derrubar.

Lembrei-me de um hotel no centro, em forma de motel, daqueles que se estaciona o carro junto aos apartamentos. Cheguei lá já passando das 2 horas da madrugada. Hesitei mas toquei a campainha. Um moço oriental abriu a porta bocejando e coçando os olhos. Me desculpando, fiz o check-in, paguei o que ele me pediu, dormi e parti no dia seguinte para Akaroa, fofíssimo vilarejo de praia a poucos quilômetros de lá, mas cuja estrada, com vista muito linda e repleta de curvas, me tomou um tempo bem grande.

No dia seguinte, eu deveria seguir viagem rumo sul, mas já estava sentindo saudades de Christchuch e identifiquei que isso acontecia devido à forma como aquele jovem do hotel me recebeu, sem questionamentos nem recriminação àquela que interrompia seu sono. Decidi passar mais uma noite lá, recuperando a sensação de acolhimento. Essa é uma das enormes vantagens de viajar de van - a possibilidade de mudar de plano no meio da estrada, sem consequência outra além de ficar mais contente ainda. 

Toquei novamente a campainha do escritório e abri um sorriso para ele.

- Lembra-se de mim?
- Sim, claro. Como foi Akaroa! Gostou?
- Sim, sim, gostei muito. Voltei! Você tem vaga para mim hoje?
- Tenho sim, mas não posso cobrar-lhe a mesma tarifa do outro dia. Tenho que cobrar-lhe NZD 140.00 (eu havia pago NZD 90.00)
- O quarto é diferente? Maior?
- Não. Todos os nossos quartos são iguais e a tarifa é NZD 140.00
- Não estou entendendo.
- É que naquela noite eu percebi que você estava precisando muito e, então, lhe dei desconto.

Nossa conversa terminou assim. Fiquei muda. Paguei com prazer o que era devido e penso nesse diálogo até hoje. Sim, eu estava muito necessitada daquele quarto e possivelmente tivesse pago até o triplo, se ele solicitasse.

O que leva alguém a cobrar menos quando o hóspede estaria exatamente na situação de não poder comparar com outros nem rejeitar o quarto?

A minha resposta é: É o imã que me atrai pela Nova Zelândia.

Em março de 2019, logo após eu retornar da viagem, houve um atentado terrorista, em duas mesquitas, por um estrangeiro racista. A primeira ministra cobriu-se com um véu muçulmano para visitar as famílias das vítimas, 49 mortos mais 80 feridos. Em entrevista, fizeram-lhe uma pergunta de forma segregacionista referindo-se àquela comunidade como "eles". Jacinda assumiu uma postura compenetrada e encerrou a entrevista dizendo  "Não. "Eles" somos Nós". 

Quem não nasceu nesse ambiente tem de aprender essas coisas muuuitas vezes. Ouvir, analisar, relembrar, repensar e querer um dia ter essa clareza...

Autor do artigo
Tania Paris