o sufoco que "tinha" que acontecer

04/10/2020

Tudo naquela estrada me distraía.

Saí de Whakatāne rumo a Gisborne. Desta vez não havia nenhum plano para o caminho. Eu apenas tinha uma semana para retornar e nada específico para ver ou fazer. Então, entrei na estrada com a sensação de que tinha todo o tempo do mundo. Bendita sensação, que abriu meus olhos para cada detalhe que fui encontrando.

As flores na beira da estrada eram belíssimas, e cresciam assim... assim como bem queriam. Tive que parar para algumas fotos.

Os cafés eram rústicos, singelos e acolhedores, como seus donos, com quem a conversa era solta e divertida. Tive que parar em vários.

Passei por uma cidadezinha, daquelas com uma rua só, em que algumas pessoas estavam sentadas com luzes azuis nos dentes. Tentei ignorar. 

Andei a rua toda para cima e para baixo e lá permaneciam as pessoas com luzes nos dentes. Não resisti e acabei entrando para perguntar do que se tratava. Estavam fazendo clareamento. Agradeci a informação e continuei andando a esmo naquela rua pequena da cidade minúscula e pensando como poderiam ter três (três!!) pessoas para fazer clareamento de dentes num lugar tão pequeno. Não deu outra: voltei e contratei o serviço.

Gastei a manhã ali, esbanjando a liberdade de não me preocupar com as horas.

Depois foi duro passar alguns dias comendo comidas sem côr. Mas valeu a pena.  

De volta à estrada, encontrei um oásis. Um fornecedor de água para fins comerciais montou um espaço para fornecer água gratuitamente. Um cartaz explicava o processo de purificação da água e atestava estar de acordo com os padrões recomendados. Sombra, uma mesa para apoiar os galões que as pessoas levam para encher... um cartaz contava sobre produção de geléias para caridade e pedia doação de potes usados, explicando que eles lhes custavam setenta centavos.

Tomei daquela água fresca. Li cada aviso. Senti admiração pelo responsável.  

O mais engraçado foi o encontro com as ovelhas.

Enquanto que, em 2018, a Nova Zelândia tinha 4,8 milhões de habitantes humanos, ela abrigava mais de 40 milhões de ovelhas.

O país adotou a estratégia de não implementar indústrias que impactassem o meio ambiente; nem possui grande usinas geradoras de energia - essa é produzida em pequenas usinas, a maioria hidrelétrica, mas também geotérmicas e eólicas, para distribuição regional. E troca produção agrícola e derivados de ovinos por produtos acabados, tipo peles de ovelha (como matéria prima para bancos) por veículos prontos.

Então, inevitavelmente, há de ter fazendas de ovelhas por toda parte. 

E lá estava eu dirigindo calmamente quando tive um contato imediato de 2o. grau com um rebalho inteiro. Fui reduzindo ainda mais a velocidade até parar, totalmente rodeada. Enquanto eu me encantava, passou por mim um utilitário com duas mulheres cheias de energia . Vendo minha hesitação, orientaram-me a continuar dirigindo. Como? Elas sabiam, e eu não consegui imitá-las. 

E assim foi o dia todo e à tardinha. Tudo era motivo para reduzir a marcha, parar, tirar fotos, saborear a sensação de uma viagem sem compromissos.

Desde que comecei a planejar essa viagem, apoiei-me num aplicativo denominado CamperMate. Ao inicializá-lo, ele reconhece a localização e apresenta as instalações mais próximas dos Holiday camps, com um conjunto abrangente de informações, como horário de funcionamento da recepção, preço, facilidades existentes, etc..  

Enquanto viajei com minha van, ele era essencial. Quase sempre havia um desses campers a uma distância de até uma hora de carro, mesmo nos locais menos povoados da ilha sul. A maioria deles dispunha de acomodações para quem não as carregasse consigo, desde minúsculas cabanas, até quartos como de motel. Então, na ilha norte, que tem o triplo da população da ilha sul, é que eu acreditava não precisar me preocupar.  

Foi só depois de anoitecer que consultei o aplicativo. Para minha surpresa, só existia um local para pernoite na região onde eu estava. Lembro-me de que, quando me aproximei, tive de enfrentar uma descida íngrime. Essa lembrança é forte porque tenho uma certa dificuldade em dirigir no escuro e por ali tudo era como breu. Cheguei e percebi que meu tanque de combustível estava quase vazio. E eles, que devem ter 2 ou 3 quartos, estavam lotados.

Perguntei por postos de gasolina. Aqui quem me lê deve dar risada. Eu estava num lugar muito deserto.

Me disseram que eu havia passado por um há uma hora, aproximadamente. Parecia impossível, mas acreditei depois. E informaram que o seguinte ficava a uma hora adiante; ou seja, dava na mesma continuar ou voltar. Mas eu não estava certa se meu combustível seria suficiente para chegar a um deles. Perguntei sobre algum local para passar a noite. Telefonaram para alguém que tinha um quarto, mas estava ocupado também. Então me informaram que o único local adicional que conheciam era um motel a mais ou menos meia hora adiante.

Agradeci muito e voltei a subir o morro com o coração na mão. Respirei aliviada por ter conseguido voltar para estrada e olhei para ela com outros olhos. Olhar para ela é força de expressão, porque estava tudo absolutamente escuro, sem nem mesmo um raio de lua para dar sinal de vida.

Pois bem, a estrada era estreita e com duas pistas - uma de ida e outra no sentido contrário, claro - e não tinha acostamento nem aqueles pedacinhos com vegetação rasteira que permitem sair da pista. Conclusão: se a gasolina acabasse, eu estaria, sim, numa situação perigosa.

Fiz tudo o que se faz para economizar combustível. Desliguei o ar condicionado, usei ponto morto onde tinha qualquer declive... e cheguei ao motel, que se constituía num terreno bem grande com alguns pavilhões rústicos com uns quatro apartamentos cada. Eram mais de 22 h e a recepção estava fechada. Bati na porta de um quarto que tinha um carro em frente. Uma senhora abriu visivelmente receosa. Perguntei-lhe se sabia como eu poderia entrar em contato com o zelador, ela disse apenas "não" e fechou a porta.

Nessas alturas do campeonato, parecia que a quantidade de líquido que faltava no tanque do carro abundava em minha bexiga...rsrs. Que sufoco! Olhei em volta - tudo continuava muito escuro. As poucas luzes do motel eram tão distribuídas que mantinham algumas regiões sem iluminação. Arrisquei-me a "whakatāne" (agir como se fosse um homem).

Nem tinha terminado e a mulher abriu a porta e me chamou. Percebi que ela repensou, achou que eu não oferecia perigo e não quis se omitir. Fez perguntas e deu várias sugestões inexequíveis, até que chegou à mesma conclusão que eu:  estacionar o carro numa das vagas que não estivessem sendo utilizadas (quase todas) e dormir dentro do carro.

Incrível noite espremida naquele carro pequeninho! Devo ter sonhado com abastecer o tanque, porque minha bexiga se encheu duas vezes durante a madrugada. Com o estado de espírito em que me encontrava, achei divertido - só restava encontrar a forma de contar isso tudo para o Beto sem que ele voltasse a temer pela minha segurança.

Na manhã seguinte, assim que clareou eu fui embora. Coloquei o endereço do posto de combustível no Google Maps e lá cheguei honrosamente com a última gota de gasolina no tanque. 

Perdi a foto. Mas só mesmo sendo levada para lá é que me permitiu reconhecê-lo. Era uma bomba de combustível no meio de um terreno comum, sem testeira, sem pessoas, sem luzes nem placas; apenas um tótem, bem distante da bomba, com uma máquina de pagamento com cartão de crédito. Funcionou e entendi porque não havia visto todos os outros que encontraria na estrada.

Tudo rigorosamente em paz, alegria renovada, voltei ao caminho para o litoral!


Autor do artigo

Tania Paris