minha sleepervan, para ir e voltar

Por inúmeras vezes desejei viajar num trailer. Me fascinava a ideia de pegar a estrada e não ter local nem horário para chegar. Ou seja, poder usufruir do caminho com o que o caminho tivesse a me oferecer.
Meu marido não se animava como eu e fomos deixando para depois, mas eu voltava a pensar nisso sempre que um desses cruzava por nós. Na rodovia 1A, ao sul de Miami rumo a Key West, parece que um a cada dois veículos é uma motohome ou reboca um trailer. E eu tinha ouvido falar sobre um velhinho, pai de amigo de algum amigo, que vendeu a própria casa e passou a viver na estrada, se colocando sempre a caminho da casa de um dos três filhos que moravam em lugares distantes uns dos outros.
Não que eu ignorasse o quão desconfortável isso poderia ser. Era a possibilidade de submeter-me aos encantos do que surgisse o que mais me atraía.
Quando iniciei a preparação da viagem, fui logo pensando que essa seria minha chance perfeita. Na ilha sul, claro! Porque ela é mais deserta e sua natureza é exuberante e diversificada. Eu não poderia saber de antemão onde iria querer permanecer por mais ou menos tempo.
Fiz duas pesquisas principais. Na primeira descobri que, ao contrário do que muita gente pensa, é rigorosamente proibido acampar numa van na beira da estrada ou mesmo em áreas de descanso, na Nova Zelândia. Mas lá existe uma profusão dos chamados Holiday Camps, que são áreas excelentes. Paga-se uma taxa para usá-los, cujo valor depende do tipo de veículo (se vai usar energia elétrica para carregar bateria e/ou descarga de dejetos do banheiro). E em quase todos existe um pavilhão com cozinha comunitária equipada, lavanderia com máquinas que funcionam com moedas comuns e banheiros. Foi neles que aprendi como é maravilhoso um banho com água quente por 6 minutos.
No início eu planejava cada movimento: tirar a roupa, enrolar-me na toalha, deixar produtos de limpeza à mão, correr para o aquecedor, apertar o botão correspondente ao meu box, voltar correndo, abrir a torneira e tomar o banho apressado. Mas logo descobri que a água não esfriava antes de eu terminar meu banho. Constatei, então, que estava tomando banho em, no máximo, 4 minutos (lavagem de cabeça inclusa). Bingo! O cara que definiu que o limite deveria ser de 6 minutos é um gênio. Atenta a isso, sem perdas ou desconfortos, nunca o ultrapassei.
A segunda pesquisa foi sobre o tipo de veículo. O mais alugado se chama campervan e tem um ótimo espaço interno, com cozinha completa e banheiro a bordo. Mas me preocupava ter alguma dificuldade para estacioná-la em áreas centrais de cidades. Escolhi a menor de todas, a sleepervan, que por fora parece uma perua como outra qualquer.
Marcaram a retirada no estacionamento do aeroporto de Nelson. Lá cheguei de taxi com minha malinha esperta, minha bolsa a tiracolo com documentos e o computador, o moletom grande, pois estava frio, e uma mochilinha pequena com o que imaginei que precisaria na primeira noite. Coloquei tudo num carrinho e, como estava adiantada, gastei tempo conhecendo o aeroporto. Estava garoando quando fui ao estacionamento, de forma que empurrei o carrinho correndo.
O motorista que trouxe a van me explicou em detalhes o funcionamento dela (sob aquela chuvinha chata gelada), me deu mapas, mostrou-me as áreas onde o seguro não cobre acidentes/quebras, desejou-me boa viagem e foi-se.
Joguei rapidamente a minha bagagem no compartimento traseiro, sentei-me no lado direito e ajustei banco, espelhos e expectativas. Respirei fundo e comecei a repetir mentalmente "left, left, left...". Peguei a estrada com o coração na mão. Tinha que olhar as placas estranhas e a cada curva lembrar-me de dirigir em "left, left, left...". Foi só na rodovia principal que me dei conta do que estava acontecendo: eu em minha van, dirigindo na Nova Zelândia! Ainda me lembro da euforia e percebendo-a eu repetia "left, left, left...". Minutos depois a euforia voltava. Eu realmente não cabia em mim!
Aproximadamente uma hora depois, do nada me veio o pensamento de que não me lembrava de ter colocado a mochila na van. Tateei, olhei para trás... parei no acostamento e conferi - ela não estava lá. Sentei-me novamente ao volante, concluindo que só poderia ter deixado cair no aeroporto, na minha corrida para o estacionamento.
Meu marido detesta voltar pelo mesmo trajeto quando erramos o caminho ou esquecemos algo. Acostumei-me a buscar alternativas para não voltar. Mas não havia alternativas, havia apenas uma escolha a fazer: ou dar a mochila como perdida, o que seria de pouco dano, ou voltar, arriscando-me a não acha-la e acrescentando umas duas horas à viagem. Voltar parecia uma agressão ao meu marido mas... eu estava sozinha. Nem tanto pela mochila, mas mais para quebrar o paradigma e apossar-me da viagem que era mesmo só minha, decidi voltar.
No caminho de volta, fui refletindo. Eu tinha um roteiro que me indicava para onde eu queria ir, mas, mesmo tendo sido eu a fazê-lo com a melhor informação que pesquisara, não poderia permitir que o roteiro mandasse em mim. Então eu percebi o quanto me deixava escravizar por objetivos que eu mesma definia. Se por causa da decisão de voltar eu não chegasse, naquele dia, ao local definido, o máximo que poderia acontecer era chegar lá no dia seguinte. Uau! Esse pensamento me fez sentir que possuo mais liberdade do que uso - ela é real, eu é que precisava me apossar verdadeiramente dela.
Extrapolando esse pensamento a outras áreas da minha vida, o tempo voou e cheguei ao aeroporto bem antes do que queria...
Perguntei a um vigilante se lá existia uma sessão de perdidos e achados, e ele perguntou-me o que eu perdera. Respondi que era uma mochila pequena. "Cinza?" ele indagou. "Sim, sim, cinza" e ele conduziu-me a uma sala no centro de operações, pediu-me para esperar, saiu, voltou com minha mochila e estendeu-a para mim. Não ousei pegá-la e perguntei se ele queria que eu atestasse a propriedade, indicando o que estava dentro. Ele sorriu e aproximou-a ainda mais de mim. Perguntei se precisava assinar algo e ele sorriu novamente, dizendo que era só. Isso foi um "contato imediato de primeiro grau" com a cultura de Respeito dos neozelandeses. Eu havia dito que tinha perdido uma mochila, havia reconhecido a que encontraram, então... era minha e ele me devolvia. Simples assim, quando ninguém jamais pensa em se aproveitar de algo ou de alguém.
Voltar mais uma vez pela mesma estrada foi mágico. Euforia em dobro. Sou livre.
Autor do artigo
Tania Paris