Heterodoxo reveillon 

02/08/2020

Beto iria chegar na manhã do dia 01 de janeiro... em Auckland. E eu estava a bem mais de 1.000 km de distância.

Adoro viagens de trem e já havia experimentado a linha do trem da ilha norte. As outras duas únicas linhas panorâmicas ficam na ilha sul. Então planejei um retorno saindo da costa leste, atravessando a cordilheira de montanhas até chegar à costa oeste, pela TranzAlpine; de lá pela Coastal Pacific até Picton; depois atravessando de ferry boat o canal para chegar a Wellington; e lá tomando um ônibus noturno até Auckland. Assim, em 3 dias eu chegaria junto com ele em Auckland, ao raiar do ano novo. Ano novo, tudo novo...

Devolvi meu carro alugado, com o hidrômetro marcando 1.013 km, na graciosa cidade de Greymouth, que se desenvolveu longamente à margem de um rio. Seu imenso calçadão é ponto de encontro de carrinhos de bebê, ciclistas, esportistas e andarilhos em busca de pôr do sol.

O primeiro trecho da viagem foi absolutamente lindo. O trem atravessa as montanhas passando por trechos que não são acessíveis por outros meios e descortinando a paisagem clara dessa região - muitas pedras, picos nevados e, de tirar o fôlego, rios e lagos azuis. As águas resultante do desgelo da neve dos picos é límpida e de um azul só delas - suave e tranquilizante. Um azul que atrai e cola o olhar. Eu ficaria dias nessas contemplação, sem desviar os olhos.  

Cheguei em Christchurch à noitinha, depois de uma viagem encantadora. Na manhã seguinte, de volta ao trem.

Antes do embarque, tempo de despachar as malas - suprema mordomia de subir os degraus de entrada do trem sem puxar bagagem! Tempo de encantar-me, mais um vez, com o cuidado com pessoas com necessidades especiais (uma plataforma motorizada eleva as cadeiras de rodas, da plataforma à altura do trem). E depois voltaria a mordomia de receber minha mala de volta, sem esforço nem confusão (delícia não haver confusão).

Picton fica no extremo norte da ilha sul é o ponto de atracagem dos ferry boats que conectam as duas ilhas.

Minha estada lá poderia ser chamada de desastrosa, não houvesse eu tido mais de um mês de dias nublados me desenvolvendo resiliência. Então, pela primeira vez na vida, eu estava conseguindo encarar os dissabores como apenas novas aventuras. Na teoria eu sempre acreditei nisso, mas na hora é necessário um estado de espírito beeem diferente daquele de quem planeja e espera que tudo corra conforme pré-definido.

Ao chegar, saí da estação e me deparei com quase nada. Onde estava a cidade de 3 mil habitantes na qual eu tinha um quarto reservado para passar a noite? Aquele espaço se resumia a uma estação de trem e outra ferry boat, uma loja de lembrancinhas e uma Subway. Eu morrendo de fome e o dia que já avançava na tarde. Fui procurar um taxi e, convenhamos, só rindo dessa ideia. Tentei me comunicar com a pessoa que vendia excursões na loja de lembrancinhas e, aos trancos e barrancos, entendi que havia apenas um ônibus que passava pela orla e chegaria onde eu precisava ir, e levava uma hora para chegar (1 hora!!!). Mas ele passava em poucos horários e havia acabado de partir. Então, só dali a 3 horas. Falei com o pessoal que estava estacionado ali, fazendo não sei o que. E não encontrei qualquer informação animadora. Lá fui eu então, puxando a mala novamente, deliciar-me com um sanduiche de salame com molho de mostarda e mel para tentar pensar no que fazer.

Fome satisfeita, a cabeça voltou a funcionar. Empunhei toda a minha coragem e telefonei para meu anfitrião. Digo coragem porque, se já é bastante difícil entender kiwi pessoalmente, falar ao telefone era sempre precedido de muito inspirar fundo e mantra de "Tania, você consegue". Seguiu-se um período atribulado, de mil pedidos para ele repetir o que dizia, e mais alguns telefonemas, todos pedindo para repetir o que era dito, em que ele conseguiu uma motorista de van que me transportasse.

Cheguei na casa em que um alegre anfitrião me esperava. Explicou-me que aquela era uma "casa aberta", onde quem quisesse podia entrar e ficar onde tivesse vontade. Não era teoria ou papo de acolhimento. Não cheguei a ver uma porta de entrada; se tinha, de tão sempre aberta deve ter colado na parede. Os vizinhos estavam agrupados na mesa ao ar livre, de frente à baía. Meu quarto era uma espécie de edícula, como outras que se distanciavam da casa por um quintal. O banheiro, bem rústico, parecia aqueles das casas antigas, onde se ia lá fora fazer as necessidades; mas ele me disse que aquele ficaria exclusivo para mim, porque só mais um quarto estava ocupado por um casal. Ele tomou meu pedido para o café da manhã e deixou-me à vontade, com pernilongos no quarto, sem inseticida, mas... tcharãmm... eu ainda tinha o repelente de vampiros! 

Na manhã seguinte o café foi novo evento na "casa aberta", numa mesa enorme conectada à cozinha onde meu anfitrião exibia seus dotes culinários. A esposa dele esteve calada e inativa durante toda a minha estada.

Consegui uma carona para a estação e embarquei no ferry. Com ele atravessa-se o Estreito de Cook em 3 horas, com muito conforto, enquanto se avista as ilhas de Marlborough Sounds, que não tive oportunidade de visitar. 

  

Experiência para uma vez só

E chegando a Wellington, capital do país, que fica no extremo sul da ilha norte, desloquei-me até o ponto de ônibus noturno para Auckland, centro comercial e principal cidade da Nova Zelândia. 

Para acompanhar o Beto, que passaria a noite ano novo a bordo de um avião, escolhi passar esse período numa rede a bordo de um ônibus. Rede, sim; como um beliche acima da cama. Quatro assentos diurnos se transformam em uma cama e uma rede à noite. Mas não gostei. Com o movimento do ônibus ela balançava e eu ficava enjoada. Sorte que poucos foram os que decidiram gastar essa noite confinados e, então, me mudei para a cama embaixo.

Ano novo já instalado, bagagens no quarto de Auckland também, corri ao aeroporto esperar o Beto, para matar a saudades, percorrer com ele a área mais povoada do país e tentar que ele se apaixonasse também pela terra dos kiwis.


Autor do artigo
Tania Paris