em Auckland, madrugada inesquecível
Planejei uma noite divertida, mas não imaginei que ela desse origem a uma madrugada tão intensa, muito além do que eu poderia desejar.
Auckland é uma cidade diferente de todas as outras da Nova Zelândia. Ela tem aproximadamente 1,5 milhão de habitantes, o que significa mais de 30% de toda a população do país. É identificada em cartões postais e nas estradas que lhe dão acesso pela gigantesca torre denominada Sky Tower.
Do topo dela as pessoas pulam, atadas a cabos de aço, e chamam aquilo de diversão. É bem adequado para a primeira impressão ao chegar ao país conhecido pelos esportes radicais. Também me pareceu radical uma cápsula de vidro com capacidades para 3 pessoas serem lançadas ao alto e balançarem violentamente.
A Sky Tower é o topo da Sky City, um complexo com hotel, restaurantes e cassino. Predomina na paisagem e serve de ponto de referência para muita coisa. Por exemplo, atrás do prédio fica o ponto de ônibus que leva ao aeroporto. E, minha nossa! Que ônibus! Absolutamente confortável, com wifi a bordo, é conduzido por um motorista que, como todos os motoristas de ônibus intermunicipais, conforme aprendi depois, narra o trajeto tornando agradável e instrutivo o tempo de locomoção.
Na rua lateral, que leva à avenida principal da cidade, encontram-se uma série de restaurantes orientais. E são orientais também as comidas servidas na feirinha das noites de sábado ao pé da torre.
Auckland funciona como uma hub, para onde convergem as estradas e os voos internacionais e nacionais, além de ser o início da estrada de ferro que leva ao sul. Por isso, estive em Auckland diversas vezes. Na chegada passei dois dias, para me integrar e tomar providências, na volta de Piha para tomar o trem, na véspera da chegada do Beto para esperá-lo, e lá estava eu novamente após ele ter decolado de volta para casa.
Como seu voo foi relativamente tarde, reservei um apartamento para dormir naquela noite, com a intenção de seguir viagem na manhã seguinte. A anfitriã havia me informado que eu poderia estacionar o carro na rua, sem me preocupar com horário no dia seguinte, porque seria feriado. Mas muito mais gente deve ter recebido a mesma dica pois fiquei rodando por mais de uma hora para encontrar uma vaga. Subi ao apartamento, acomodei minha mochilinha, filial da mala para estadias curtas, e... cansadíssima, achei que merecia jogar um pouquinho no cassino.
Foi então que descobri duas coisas interessantes sobre o dia seguinte.
Primeiro: seria a data mais importante do país, feriado denominado Waitangi Day.
Um pouco de história
Um dos motivos que me levou à Nova Zelândia foi a busca pela origem da cultura de Respeito, tão maravilhosa e entranhada nos atos cotidianos. Não obtive uma resposta exata, mas tive oportunidade de conhecer a história do tratado de Waitangi.
Os maōris chegaram a essa terra e se estabeleceram, em tribos. As tribos lutavam entre si, até que o capitão Cook e seus marujos lá desembarcaram. Com sangue pirata, fizeram uma carnificina. Em face ao iminente massacre que a invasão inglesa representava, e cientes da superioridade bélica dos mesmos, 25 chefes maōris juntaram forças e criaram um estado, denominado "United Tribes".
5 anos depois, essa organização assinou o tratado que estabelece o relacionamento entre os dois povos, sendo essa data considerada a fundação do país.
Além da proteção aos direitos dos maōris, o tratado estabelece a proteção a todas as suas terras consideradas sagradas. Nesses lugares, como já pontuei anteriormente e voltarei a fazê-lo depois, adota-se uma atitude de devoção. Maōris têm a terra como morada, fonte da vida,... como sendo literalmente sua mãe.
A segunda descoberta diz respeito ao poker, que gosto muito de jogar.
Eles estavam organizando para o dia seguinte, às 14h30, o maior torneio anual de poker da Nova Zelândia.
Com inscrição de $120,00 dólares neozelandeses (que naquela época tinha cotação apenas ligeiramente abaixo do dólar americano), achei que tinha condições de me dar essa emoção - sem direito a recompra, caso eu fosse eliminada logo.
E, pelo fato do torneio começar bem cedo, eu estaria descansada e na melhor forma para não ser muito impulsiva e me divertir por umas 3 ou 4 horas; talvez 5 ou 6...
Então, dormi, organizei minhas coisas, fiz check out e coloquei meu carro no estacionamento do Sky City. Como tinha me inscrito para o cartão fidelidade do cassino, o estacionamento era cortesia e, assim, eu não teria qualquer preocupação se demorasse bastante.
Minhas maiores inimigas nas mesas de poker são minha curiosidade, impulsividade e esperança. Elas fazem com que eu sempre tenha vontade de "ver o flop" (pagar para participar até abrirem as 3 primeiras cartas) e, quando armo algum jogo razoável continuar pagando na esperança de que a carta esperada apareça em seguida. Essas fraquezas me levam a alguns golpes de sorte, mas também a gastar minhas fichas muito mais depressa do que deveria. Racionalizo, sei que devo refrear-me, mas às vezes me deixo levar pelo prazer e não pela técnica.
Então sentei-me à mesa decidida a "foldar" (aportuguesamento de fold = desistir das cartas naquela mão) com muito mais frequencia que o meu habitual; ou seja, decidida a ser mais racional que emotiva (o que significa ser mais profissional). Jogo bem e sabia que se eu conseguisse foldar mãos mediocres, eu teria alguma chance de ir longe. Principalmente porque estou bem longe do estereótipo do jogador de poker. Sendo mulher e não jovem, quando armo para puxar o pote, é muito frequente que eu seja subestimada e o outro jogador pague minha aposta.
Mas depois de umas muitas mãos sem puxar fichas, lá estava eu caminhando para não foldar sempre que deveria...
Um rapaz em minha mesa era bastante expansivo e tinha acumulado muito mais fichas que todos os outros. E naquela mão, ele estava na melhor posição da mesa - a que tem a ação por último. Tirei 4 e 6 de paus; cartas que poderiam compor um flush (cinco cartas de mesmo naipe), que seria um flush baixo (qualquer duas cartas de paus sendo uma delas maior que 6 ganharia de mim) e também poderia compor uma sequencia (também muito baixa). O correto seria foldar, mas aconteceu o que sempre acontece e que eu descrevo como "as cartas ficaram fazendo tchauzinho para mim - Tania, Tania, Tania!!".
Não deu outra: paguei para ver o flop. Quando chegou a vez do rapaz, ele aumentou significativamente a aposta e só um dos outros jogadores pagou a diferença. Sim, qualquer um com um mínimo de bom senso abandonaria a minha ou qualquer outra mão. Ele certamente estava com cartas gigantes.
Eu não abandonei. Ele estranhou.
As três cartas do flop foram bastante medíocres. Nenhuma repetição de naipe nem próximas o suficiente para fazer uma sequencia. Foi algo como rei, 8 e um 4. O primeiro jogador deu check (ou "bateu mesa", como se diz quando não aposta e o jogo prossegue). Fiz o mesmo e o rapaz, com uma atitude de superioridade fez uma aposta muito alta. O outro jogador abandonou suas cartas e nem preciso dizer que meu 4 gritou na minha mão. Paguei convicta de que estava cometendo um erro, mas paguei. Minha curiosidade dizia "quero ver".
A carta seguinte manteve a mediocridade da mesa e a sequencia de ações: eu check, o garotão aposta alto e eu pago - quase metade do que eu tinha em fichas. Nessa ação eu percebi que queria fazer o que eu bem tivesse vontade e me preparar para ir embora logo depois.
Mas a última carta foi um 6. Pensei, respirei fundo, e dei all in (apostar tudo o que tem). Ele imediatamente pagou e mostrou exultante um par de azes (acho que ele estava certo de que eu tinha um par de reis). Mas dois pares ganham de um par, por maior que ele seja.
Lembro-me da fúria. Ele repetiu inúmeras vezes "isso não existe". E, sim, ele estava certo, não se joga como eu joguei. Mas o fato é que, com meu stack (conjunto de fichas) mais do que dobrado, já tinha me divertido muito com aquilo, podia jogar mais solta, e não precisava, nem poderia, repetir aquele tipo de besteira.
O rapaz passou a me perseguir e isso foi o que de melhor me aconteceu. Bastava eu pagar alguma aposta, que ele dava um all in. Fechei-me para não perder fichas à toa, nem me meter numa jogada arriscada, e acalmei meus ímpetos. Esfriei e esperei pacientemente. Num rebalanceamento de jogadores, ele foi mudado de mesa. Aproveitei e voltei a jogar tecnicamente. Fui aumentando meu stack, de forma que quando ele foi remanejado de volta eu já estava muito maior que ele. Sua raiva lhe foi fatal e eu o derrubei.
Mas emocionalmente equilibrada, cheguei à mesa final. Tentei não pensar nisso e jogar como se a qualquer momento o garotão fosse me perseguir - ou seja, só pagava o que valia a pena defender. Jogar na mesa final foi mágico, tanto porque eu estava realmente jogando bem, como pelo fato de estar sendo temida.
Quando sobraram três jogadores, aquele que tinha mais fichas propôs um acordo. Segundo ele, era muito tarde e ainda teríamos de jogar muito para acabar o torneio.
Não cheguei a pensar direito. O outro jogador, com o menor stack, me pediu para aceitar e não consegui recusar.
Fui oficializada como 2a. colocada e deixei o cassino com $ 9,000 dólares.
Guardei aquele dinheiro todo na bolsa e me dei conta de que já passava muito das 2h da madrugada. Eu enriquecida...rsrs... e sem teto...
Não conseguiria buscar um lugar para dormir como se nada daquilo tivesse acontecido. Então, peguei a estrada em direção ao litoral leste. Imaginei que encontraria um motel de estrada e dormiria depois que diminuisse meu estado de exultação. Não achei.
Em torno das 6h da manhã o céu se tingiu de vermelho na minha frente. Absolutamente magnífico e eu na auto via sem poder parar para babar e tirar fotos. Continuei até chegar em Tauranga.
Às 7h da manhã, dirigi-me à recepção de um motel. O gentil senhor que me atendeu estranhou minha chegada sem reserva, àquela hora, e informou-me que o check in era às 14h. Frente minha cara de cansada, perguntou o que ocorria. Era tudo de que eu precisava, para contar minha história e pedir para pagar em dinheiro! Ele liberou o quarto e dormi o tal do sono dos justos.
Que noite! Que madrugada! No dia seguinte eu iria planejar como evitar usar o cartão de crédito, pois calculava que o dinheiro seria suficiente para pagar todas as minhas despesas até voltar para casa! Foi sim, e sobrou.
Autor do artigo
Tania Paris