Doubtful Sounds e o tributo ao silêncio
Quando entrei naquele barco, esperava ver cenas lindas, mas nunca, nem em meus sonhos mais ousados, esperaria imergir no silêncio completo. Impossível fotografá-lo, impossível descrevê-lo... sensação única, especialmente para quem recarrega suas energias no silêncio dos domingos de manhã. Aquele silêncio foi surpresa dos deuses... era mágico!
Para chegar a Fiordland, percorri o que faltava da estrada pela costa leste e nela descobri as trilhas! Depois de me embrenhar em várias, cheguei à minha definição do que é uma trilha kiwi: é um caminho geralmente bonito, geralmente penoso, com uma recompensa no final.
Comecei por trilhas curtas. Na entrada de cada uma delas há sempre uma placa com as informações de que eu necessitava: o nome da recompensa, o comprimento da trilha, o tempo necessário para ir e voltar (sim, porque muitas são em declive e, então, o tempo de ida é muito menor do que o de volta) e o grau de dificuldade. A primeira que me encantou levou-me a um lago escondido, com uma simpática passarela em madeira que permitia contorná-lo. Cheguei cansada, mas não consegui parar de andar. A paz emanava não apenas das águas, mas principalmente da sensação incrível de estar completamente sozinha naquele lugar lindíssimo. Como não poderia deixar de ser, o dia me brindava com meu constante e importante aprendizado - estava nublado.
A trilha seguinte foi mais "badalada". Muitos carros estacionavam no páteo que dava acesso ao início dela e um casal maōri vendia ingressos (esse foi o único lugar, em toda a Nova Zelândia, que encontrei cobrando taxa de conservação).
Cathedral Cove é uma grande caverna na praia, com duas entradas e que se alaga com a mais simples das marés; a alta a deixa inundada e a torna perigosa. Por isso, visitas só são liberadas nos períodos de mará baixa. A trilha até ela é muito bonita e o excesso de pessoas indo e vindo não foi suficiente para atrapalhar. Digo excesso me referindo a cruzar com meia dúzia de pessoas...rsrs... a trilha anterior me deixou tão mal acostumada que eu havia começado a sentir que toda aquela natureza escondida dentro de trilhas poderia ser usufruída em estado privativo...rsrs
Fiz a simpática voltinha no extremo sul da ilha sul da Nova Zelândia, para conhecer Bluff, cidade de pescadores, sede de festival de ostras, pequena, cheia de bares. Uma camiseta descrevia o espírito do lugar: A drinking town with a fishing problem.
Chamou-me a atenção uma lojinha aberta, sem ninguém, onde se podia deixar hortaliças, roupas, livros, obras de arte... o que estivesse em bom estado, e levar o que quisesse...
Dormi numa hospedaria, daquelas onde acontecem assassinatos nos filmes de suspense, mas que tinha uma proprietária encantada com o fato de eu ter me aventurado a passar a noite ali. Seu nome, Kōtuku, se refere a uma ave branca, muito grande - engraçado pronunciar precedido do artigo: fica "te cutuco".
E de lá segui para a região denominada Fiordland. Ao me aproximar, a primeira visão foi a do grande lago Te Anau, com picos nevados nas montanhas ao fundo. Tinha praia com aqueles lugares especiais, limpíssimos, para picnic ou contemplação. Tudo quase deserto já foi me preparando para o que viria.
Aprendi que fiordes (pelo menos aqueles) são consequência da ação da neve dos picos que derrete nos dias menos frios, dando origem a uma profusão de cascatas que escavam as encostas das montanhas formando estreitos vales entre elas e lagos límpidos nas suas bases.
O ponto mais conhecido chama-se Milford Sounds, mas escolhi Doubtful Sounds para minha excursão. Ela inicia-se atravessando o lago, em direção ao oceano; nesse caso, o Mar da Tasmânia. Em seguida, um ônibus atravessa um trecho de terra e outro barco, bem menor, nos leva pelos estreitos canais de água até o ponto que deu nome ao lugar. Conta-se que o capitão Cook chegou ali pelo lado de fora e não conseguiu ter certeza do que se tratava, se era a foz de um rio ou algo mais perigoso; e depois de muita dúvida, decidiu não arriscar. Ele definitivamente não sabe o que perdeu!
Deslizar pelas águas sem peixes, nem pássaros, nem nenhum outro intruso que não os poucos turistas do barco, bem atípicos (calmos e maravilhosamente quietos), permitiu escutar o silêncio do lugar. Tive a impressão de estar dentro de uma bolha, joia da natureza. Nenhum som, exceto o do motor do barco até que...
o guia solicitou a todos que guardassem seus equipamentos, fossem para a parte mais externa do barco e não falassem nem se movessem, pois iriam desligar o motor.
10 minutos no paraíso.
O coração pode ter descumprido as instruções, porque o restante do corpo mergulhou num silêncio amplo, total e inebriante que se apoderou do todo de mim. Tive medo de respirar e quebrar o encanto. Sorvi aquele momento como energia, força e deslumbramento que me abastecem à simples lembrança do que jamais imaginei existir, menos ainda viver.
Doubtful Sounds, not a glance of doubt.
Autor do artigo
Tania Paris