Descomplicando

14/02/2021

Durante um passeio na praia, desligada do cotidiano, questionei-me em voz alta, mas só para o Beto ouvir, como eu queria que as pessoas, principalmente as mais próximas, se lembrassem de mim depois da minha morte.

Como acompanhei alguns processos de inventário, me veio imediatamente à mente duas imagens.    

A primeira foi a da falta de sossego de que os parentes mais próximos são vítimas logo após perderem alguém querido. Existem providências de ordem prática que atrapalham aquele período de início do luto, no qual lhes deveria ser dado o direito de ficarem quietos com sua dor. 

A segunda foi a trabalheira para obter documentação e confusões por informações nebulosas.

Meu pai deixou tudo organizado, o que poupou seus filhos de dúvidas e gasto de tempo. 

Então respondi que queria ser lembrada só com saudades; que não queria que tivessem dor de cabeça ou trabalho por me perderem.

Há muito tempo assisti a um capítulo do seriado Friends em que um dos personagens perdeu a avó. Após o funeral os amigos vão para a casa dela e ao mexerem numa prateleira da cozinha caem milhares de saquinhos de adoçante. A cena foi acompanhada das risadas prontas, mas eu fiquei triste. O neto explicou que ela costumava pegar saquinhos de adoçante nos restaurantes. Novas risadas, eu mais triste ainda.

Fiquei pensando na mania daquela velha senhora, que de alguma forma lhe dava distração ou conforto, ridicularizada da mesma forma com que se julgam à queima roupa os hábitos exóticos que vão se incorporando à rotina das pessoas seja lá por quais motivos forem. Enquanto se está vivo, basta ser discreto ou esconder. Mas quando se morre, aquele papel de carta lindo que comprou sem intenção de usar; aquele chá que perde a validade porque não se tem como comprar outro igual; aquelas bobeirinhas que se trouxe como lembrança de viagem...ah! aquela concha quebrada que faz a reviver mais que a praia inteira... muita coisa estranha que ainda não foi para o lixo...

Muito mais tarde, bem depois de ter executado essa fase do meu projeto de preparação para a minha morte, entendi porque ela ganhou prioridade. Gail Blanke, em seu livro "Jogue fora 50 coisas" explica que devemos nos organizar iniciando pelas coisas - livrar-se do lixo material, para depois livrar-se do lixo profissional, para estar, então, preparado para atacar a bagunça mental e, só então, mergulhar na organização de si mesmo. Faz sentido, e fez para mim antes mesmo de eu conhecer o conceito.

Definir que queria ser lembrada só com saudades me conduziu a esse caminho, iniciando pela parte material.

Houve uma época em que Beto e eu seguimos uma ideia de meu sogro: comprar terrenos vendidos em parcelas pequenas, em loteamentos recém lançados, que custavam muito menos do que seu potencial, que só seria alcançado quando casas começassem a ser erguidas neles. Consideramos que se comprássemos três, em locais bem distintos, bastaria que um deles decolasse para que o investimento total estivesse pago com vantagens. Deu certo. O terreno em Itanhaém foi vendido por aproximadamente o dobro do que investimos nos três. O de Caldas Novas foi vendido por uma ninharia e o de Caraguatatuba por um valor que apenas compensou a correção monetária, mas que deixou uma amiga bem contente.

O fato de não ter tido prejuízo naquilo que eu considerava o cúmulo do arrojo quebrou minha resistência conservadora; e seguiram-se alguns negócios pouco ortodoxos que ficaram em desacordo com minha nova fase de preparação para a morte. Tínhamos bens que poderiam se desvalorizar bastante e outros sem documentação, inclusive um que dependia integralmente de terceiros. Essa constatação tornou sólida a nova filosofia que se instalou: descomplicar - desfazer-se de tudo o que poderia dar dor de cabeça a quem tivesse que tratar do assunto depois de nossa morte.

Foi uma etapa longa, árida, bem chata e cansativa. Mas como aprendi com a Gail depois, me preparou para fases mais gratificantes ou prazerosas. Ela trouxe sentimentos ambivalentes, mas os incômodos de cada ação eram esquecidos com comemoração, incluindo a alegria de compartilhar parte dos valores de venda com nossas filhas, como que numa antecipação de herança. 

Quando completamos nossa descomplicação, senti-me como que saída de um bom banho. Nos prometemos evitar ações que pudessem complicar alguma coisa e passamos a usufruir da inexistência desse tipo de preocupação. Senti-me animada para iniciar uma próxima fase. Poderia, então, ir me aproximando - um pouco lentamente, confesso - da fase emocional.


Autor do artigo
Tania Paris