Desapegando
Eu não tinha ainda 5 anos quando minha avó materna faleceu. Meus pais me levaram para Ouro Fino, MG e lá permaneci durante o funeral. Eu não entendi direito a perda, mas na copa, depois do enterro, tive a sensação de não mais iria brincar com a tesourinha sem ponta que ela guardava para mim ali, na gaveta. Não sei se outros netos brincavam com ela, mas, para mim, era certo de que se minha avó não estaria mais naquela casa, a tesourinha me pertencia. Corri pegá-la e perguntei a meu avô se eu poderia levá-la para casa. Ainda não entendo porque perguntei. Ele disse não e, percebendo meu desapontamento, disse que ela ficaria no mesmo lugar para eu brincar quando voltasse lá.
Não tenho lembrança de ter brincado mais com minha tesourinha. Mas, dois anos depois, meu avô morreu. Viajamos novamente para Ouro Fino e no caminho eu só conseguia pensar nela. E enquanto os adultos choravam na sala, fui calmamente até a copa, abri a gaveta e me apossei definitivamente daquela tesourinha. Não falei nada com ninguém, nem antes nem depois.
Aquele objeto pelo qual esperei dois anos está comigo até hoje; um tantinho enferrujada, mas funcionando perfeitamente bem. Já morou no esconderijo onde guardo preciosidadades como ela e de lá saiu para abrigar-se numa gaveta em meu escritório, quando ponderei que eu queria tê-la à mão para usar de vez em quando.
Confesso que quase não me lembro de minha avó, nem de como brincávamos. Meu apego à tesourinha é um tributo àquela criança que eu fui; honesta com meu avô, dócil e quietinha, porém determinada e destemida quando ele se foi. Queria poder pegar aquela criança no colo para ampará-la durante alguns vácuos que vivenciou. Queria dizer-lhe que ela é amada, pelo menos por mim, independentemente de ser boa aluna, obediente e tudo o mais que projetavam para ela.
Aquela criança cresceu num lar pobre. Meu pai trabalhava das 9 da manhã às 9 da noite. Minha mãe costurava tudo o que vestíamos e economizava o que quer que pudesse ser útil um dia. Lembro-me de quando minha tia ganhou um mostruário de tecidos de algodão estampado que estava saindo de linha. Ela disse que aquilo não tinha utilidade alguma e minha mãe aceitou a doação. Fez patchwork com os retalhos e, com eles, bermudas para meus irmãos. O papel que embrulhava o pão servia para eu fazer rascunho das redações escolares. E, assim por diante, fui aprendendo a não desperdiçar nada.
Quando minha mãe morreu, meus irmãos e eu nos reunimos na casa dela e, carinhosamente, combinamos de cada um pegar o que quisesse. Talvez eu devesse ter pego a frigideira de onde saiam os bifes mais cobiçados da família. Não me lembrei. Peguei apenas um banquinho.
Até meus 10 anos não existiam cadeiras em minha casa. Havia uma mesa de madeira na cozinha, com 4 banquinhos. Foi um desses que eu peguei. Durante mais de 50 anos assisti à metamorfose da utilidade deles. De assento viraram mesinhas para os netos desenharem ou comerem, sentados num banquinho ainda menor que surgiu não sei de onde. Elas testemunharam e foram a imagem viva de como meus pais saíram do nada e proporcionaram estudo de qualidade até a faculdade para 4 filhos.
O banquinho hoje mora em minha cozinha e é usado para alcançar as prateleiras mais altas dos armários.. Não combina, claro. Combina sim, claro.
O chefe Kimo, de Maui no Havaii, disse que existem duas formas de se tornar rico: ganhar mais ou desejar menos.
Essa recordação tão significativa de meus pais me lembra, antes de tudo, da atitude e garra deles frente às dificuldades da vida. É meu tributo à educação acadêmica que me rendeu uma boa carreira e à financeira, que permitiu que eu me casasse com o amor da minha vida, igualmente sem recursos, e fôssemos comedidos em desejos de consumo, de forma a termos construído uma base sólida que nos deu e dá conforto mesmo durante nosso envelhecimento.
Ao longo da vida, guardei muitos objetos nos quais dediquei muito esforço, como meu caderno de geografia cheio de mapas caprichados, e muitos outros que me trazem recordações de momentos ternos, como o vestido que usei quando dancei a primeira vez com o Beto.
Pensando em descomplicar, e principalmente enquanto lia "Jogue fora 50 coisas", de Gail Blanke, finalmente concluí que existem usos melhores para muitas das coisas que eu guardava. Existiam aquelas que certamente nunca usaria; e que ainda estão em condições de serem utilizadas por outras pessoas. Existiam aquelas que talvez um dia eu precisasse, mas num futuro incerto e provavelmente muito distante. E existiam as que eu guardava só para aquecer meu coração.
Gail é tão convincente que decidi experimentar. Ela define como "coisa" uma categoria de "coisas", ou seja, revisar todos os meus sapatos, jogar 2 deles fora e doar outros 3, contou como tendo jogado fora 1 coisa. Esvaziar a gaveta de lingerie e colocar de volta só um décimo do que estava ali, contou como +1. Encher a lixeira de documentos desatualizados e montar umas seis caixas grandes de material histórico da ASEC para enviar para a sede, contou como +1. Dava trabalho, mas os espaços foram se abrindo dentro dos armários. Abrir as portas passou a ser prazeroso e percebi que tinha pouco apego a muito do que guardava inutilmente. Excepcionalmente eu encontrava algo de que não precisava e tinha vontade de reter. Nesses momentos, a regra número 3 da Gail vinha em meu socorro: "se você está em dúvida se deve ou não jogar fora, jogue".
Não me lancei à maratona num dia atrás do outro. Eu me conheço e não tenho disposição para tanto. Respeitei meus limites e meu tempo de absorção do processo de desapego e ataquei 1 coisa por semana aproximadamente.
Resistiram a tesourinha, o banquinho e todos os cartões e bilhetes carinhosos que ganhei. Eles são extremamente úteis.
Desapeguei-me de um caminhão de papéis e objetos e - muito mais importante - desapeguei-me de fatos e lembranças que joguei fora na limpeza. À arejada nos armários, seguiu-se a arejada na cabeça que, me libertou de pensamentos desgastantes e abriu espaço para escrever (do que estou gostando muito); e seguiu-se a arejada no coração - depois de jogar fora algumas pessoas, abri espaço para amar melhor as inúmeras que, com maior ou menor intensidade, compartilham momentos de vida comigo, como as que leem o que escrevo.
Eu não diria que, ao me desapegar do material, eu me apeguei em pessoas. Não, foi diferente. Natasha, Marcelo e aquelas duas crianças que eu amo tanto estão morando na Alemanha. Doeu no início, mas sei que não é apenas o que eles querem, é mais do que isso, é um projeto que está desenvolvendo, de forma acelerada, cada um deles. Morro de saudades, mas a melhor forma que tenho de amá-los é dar apoio incondicional. Assim, já não me sinto apegada.
Essa etapa de rever toda a minha caminhada enquanto me desapegava de coisas, me ensinou a ver pessoas com mais clareza: não como minhas, o que me levaria a querer retê-las, mas como companheiras em alguns ou muitos momentos de vida, o que me leva a prezar pelos seus bem estar e atrever-me a manifestar carinho.
Autor do artigo
Tania Paris