Como tudo começou

Bagagem para 90 dias - leve para carregar sem ajuda
Bagagem para 90 dias - leve para carregar sem ajuda

Em novembro de 1999, viajamos, meu marido e eu, com meu irmão e esposa, para a Austrália e voltamos uma semana depois deles. Ao planejar nossa volta, notei que voaríamos naquele incrível trecho que chega à Papeete mais cedo do que se saiu de Auckland, após 6 horas de viagem. Iríamos fazer só uma conexão na Nova Zelândia, mas se ficássemos um dia inteiro lá, coincidiria com meu aniversário, que ficaria ampliado. Parecia uma brincadeira de criança: dois dias de aniversário... como se eu fosse ligada nisso...

Não pesquisamos nada para aquela parada. Apenas pensamos em conhecer um pouquinho do que não fosse a metrópole. Então, alugamos um carro e nos afastamos em direção norte, pela rodovia principal. Seguimos devagar, parando com constância, admirando a natureza e os bancos para piquenique, sempre limpos, disponíveis em toda parte.

Gostamos de piquenique. Nos atrai entrar num mercadinho, comprar pão e alguns frios e comer contemplando água. Geralmente isso se torna complicado pela falta de lugar para apoio. Mas ali, era como se cada mesa estivesse nos chamando.

Em pouco mais de duas horas chegamos a uma encantadora cidadezinha, Whangarei, cujo nome não anotamos, pois não pensávamos que um dia fossemos precisar dele. De frente a um cais lotado de embarcações, a rua principal oferecia paz, bares, a sensação de querer ficar e a oportunidade de comprar aquele desejado sanduiche. Perdemos a hora que não tínhamos e ao entardecer estávamos buscando uma casa para pernoitar. Preferimos um bed & breakfast para nos aproximarmos do estilo de vida local.

O quarto que locamos era peculiar. Tinha janelas nas cinco paredes, o que incluía janelas sobre a cama, dando para um jardim, e uma do tipo piramidal no teto. Acordei com raios de luz entrando por todos os lados, e um beijo doce do Beto, que perguntava o que eu queria de aniversário. Se eu tivesse pensado um pouco, talvez houvesse dito que queria reter aquela serenidade que se respirava ali. Mas ansiosa por aproveitar a pergunta, respondi a primeira coisa que me veio à cabeça: "eu quero um crepúsculo".

Lembro-me, como se fosse ontem, da reação decepcionada dele dizendo "ah! Você não pode pedir algo que eu possa lhe dar?"

Nosso voo era tarde da noite, de forma que saímos calmamente ao término do nosso período de hospedagem e iniciamos muito cedo a pequena viagem de volta ao aeroporto. Mesmo parando no caminho, já estávamos a aproximadamente meia hora de distância quando ainda eram 16 horas.

Vi uma placa indicando saída para praia e cobrei meu presente. Propus tentarmos um crepúsculo ali. Ele topou e descemos alguns quilômetros até atingirmos o litoral.

Minha primeira impressão foi que eu iria parar de respirar. As areias negras vulcânicas retinham uma lâmina de água das marés, sobre a qual crianças corriam, namorados passeavam... e a maré ia e vinha mantendo a lâmina d´água que espelhava o céu, duplicando a paisagem.

Poderíamos ter ficado horas admirando a beleza, não fosse a curiosidade despertada por passarelas que convidavam a subir um morro próximo. 

Encontramos uma colônia de pássaros migratórios. Eles chocam seus ovos naquelas rochas e alimentam seus filhotes até que estejam fortes o suficiente para empreenderem a migração para a Austrália. Não tínhamos pressa e fomos nos deixando levar pelas placas espalhadas ao longo da passarela, que nos informavam sobre os hábitos desses pássaros e, de repente, notamos que o ambiente estava mudando de cor.

Muito lentamente, céu e areia moveram-se do amarelo ao laranja, escureceram ao abóbora, tingiram-se de vermelho e foram, ainda mais lentamente, se tornando lilás. Eu nunca havia visto nada semelhante. Clicava minha câmara fotográfica freneticamente mesmo sabendo que não conseguiria retratar o que estava vendo. As cores eram indescritíveis - céu, mar e terra em nuances das cores que mudavam contínua e... lentamente.

É claro que a memória afetiva se situa distante da realidade. Ela sempre me disse que aquele crepúsculo durou 2 horas. Não pode, né? Acho que acredito nisso porque vivi cada segundo com a intensidade de quem queria acreditar que a natureza havia providenciado meu presente de aniversário.

Aquela imagem retornou a minha mente milhares, milhares mesmo, de vezes. Prometi a mim mesma que voltaria; voltaria àquele lugar tão distante, do outro lado do mundo; mas seria para morar lá por um bom tempo. Eu queria entender porque existiam mesas de piquenique impecavelmente limpas, disponíveis para quem quisesse usar. Queria aprender a cultura do respeito que exalava em tudo que vimos.

Ano após ano, a lembrança fortaleceu a determinação e acabei por cravar o tempo necessário para realizar o sonho: precisava que fossem 90 dias. E sonhei com essa viagem por exatos 19 anos.

Quando me perguntavam o porquê de 90 dias, eu dizia que para fazer uma viagem dessas seria necessário uma preparação igual à que se faria para morrer: realizar o que tivesse que ser realizado e deixar tudo tão organizado que ninguém precisasse de mim. Então, eu queria me preparar para morrer sem ter uma sentença e usufruir de todas as vantagens que essa preparação me traria.

Mas 90 dias era impensável para meu marido. E a viagem só começou a ser realmente planejada quando decidimos que 90 dias era o meu tempo. Ele iria depois e voltaria antes, para ficar em sua área de conforto e eu não abrir mão do meu projeto com tudo o que achava importante nele.    

Robert com Peter, quando em visita à sua casa
Robert com Peter, quando em visita à sua casa

Aprendi muito sobre a Nova Zelândia com um amigo kiwi (que é como os neozelandeses se referem aos habitantes de lá). Kiwi é um pássaro, um dos símbolo do país. E kiwi é também uma fruta, que tem esse nome porque seu formato e cor lembram o pássaro (não o inverso).

Peter foi diretor de Befrienders Worlwide. Nos encontramos várias vezes quando viajávamos à Europa para o Robert participar das reuniões do board de diretores, ocasiões em que eu reservava um tempo com ele para aulas de geografia.

Nosso último encontro antes da viagem aconteceu na Lituânia e eu estava eufórica porque havia conseguido, finalmente, marcar minha viagem. Nessa nossa reunião, abri o mapa do Google Maps e ele contou-me o que esperar de cada cidade e cada região e cada praia significativa do país. Foi a partir dessas informações "de dentro" que comecei a dar corpo a um roteiro.

     

Comecei traçando a rota que visava contornar, pelas praias, a ilha sul; essa que é menos populosa. Ela é conhecida como a ilha dos esportes radicais, mas eu definitivamente não estava em busca deles. Queria acesso àquela natureza quase em estado virgem, que me fizesse desacelerar o ritmo em que levava minha vida.  Logo pensei em percorrê-la num trailer e, assim, aprendi os nomes dos diversos tipos de veículos em que se dorme dentro. E escolhi o menorzinho - a sleepervan. 

Decidi passar a primeira semana na ilha norte, desembarcando em Auckland e indo em seguida para a praia onde o sonho começou, para passar lá o meu aniversário. Em seguida eu pegaria um trem que me levaria para Wellington, no extremo sul, pegaria o ferry para atravessar o canal entre as duas ilhas, passaria uma semana em Nelson, para me ambientar com a cultura e, então pegaria a sleepervan. Baixei em meu celular o aplicativo que indica os holiday camps, onde é possível estacionar à noite e... percebi que eu estava me preparando para uma aventura que, para meus padrões, seria radical.

Depois de 40 dias, eu voltaria para Auckland para esperar a chegada do Beto e percorrer com ele uma parte da ilha norte, permanecendo nela até o fim da minha viagem.    

Aos que me perguntavam se não me sentiria só, eu respondia que não iria sozinha - eu viajaria comigo mesma e nós nos damos muito bem. E, assim, essa se tornou a viagem da minha vida; a que me deu oportunidade de testar meus limites, quebrar paradigmas, descobrir singelos enormes prazeres, e, sobretudo, estreitar contato com o que sou e no que eu poderia me transformar.


Autor do artigo
Tania Paris